Confira o Conto "Milágrimas", 3º colocado na Antologia Tocantina 2024 José Concesso

Milágrimas
Milágrimas é um conto escrito por Tácio Pimenta, premiado com a terceira colocação na Antologia Tocantina 2024 - José Concesso, um projeto de Ronaldo Coelho Teixeira.
O primeiro milagre não passou de um acidente. Um tropeço ao retornar com a jarra da sacristia para o altar. Gotas do vinho canônico lançadas ao alto. Uma tentativa apressada de limpar a sujeira do chão, para apagar as provas do destrambelho antes que a celebração iniciasse. Estavam, assim, criadas as circunstâncias para que dona Maroca se tornasse uma espécie de intérprete dos sinais divinos na terra.
Ao final da santa missa, era costume dos mais fiéis tocar os pés descalços da escultura de Nossa Senhora da Purificação, fazer o sinal da cruz e beijar as pontas dos dedos antes de seguir para os minutinhos de resenha e mal falança na calçada da paróquia. Foi, porém, a própria Maroca quem primeiro apontou para os olhos da Santa e exclamou com sincera admiração. “Valha-me, Pai! Olha lá, Nossa Senhora tá chorando sangue!”.
Padre Onofre logo tomou as rédeas da cena, seu rosto bastante corado e os pequenos olhos, ainda mais apertados que de costume, irradiavam comoção. Aquela noite a homilia ainda se prolongaria por horas adentro, com urgência, como não poderia deixar de ser frente a tão fortuito acontecimento.
A notícia correu como rastilho e os que já se encaminhavam para o sono de domingo, voltaram no mesmo pé para se amontoar próximo ao altar e observar o padre comovido, imerso em choro e suor, a gesticular efusivamente. Entre a santa e a beata. Entre Maria da Purificação e a outra Maria, a Do Carmo, conhecida por todos como Maroca, que se postou estufada como um pavão entre a imagem da santa e o inflamado sacerdote.
Na inflexível hierarquia da comunidade paroquial, onde mais vale quem mais dá, seja em doação ou devoção, a beata Do Carmo sentiu o aprazível sabor de pular etapas e alçar novos degraus de apreço social amparada por um novo e oportuno critério: a intimidade com o divino.
A ascensão de Maroca sobre as outras carolas deu-se de maneira natural e com incentivo de padre Onofre, o que causava em mesma proporção admiração e ciúmes. O próprio vigário sentia, a cada oportunidade, a necessidade de lançar mão do testemunho daquela que vislumbrou a gota, ainda em estado líquido, e a todos anunciou a boa nova. Fato este que colocou fermento na lotação das missas e no saldo do ofertório pelas semanas seguintes.
Maria do Carmo, a mulher por trás da beata Maroca, era uma solitária, rendida aos anos, que havia encontrado naquelas paragens a tranquilidade para ruminar em paz as dores da viuvez que lhe abraçara há mais de quinze anos, e, ainda, combalida pela perda do único filho, Juvêncio, que há menos de cinco, seguiu de forma trágica o caminho do pai. Sua vida, nesses tempos, dividia-se em cuidar de Rosa, sua irmã mais velha – há muito alienada das faculdades físicas e mentais –, e dar conta das obrigações da igreja, junto àquelas mulheres que preenchiam um pouco o vazio de sua vida, mas que logo voltavam para suas famílias, maridos, filhos e netos. Voltavam de um modo que seu rebento, nunca voltou.
Embora sua surpresa ao apontar aquela gota rubra sob os olhos da madona tenha sido espontânea, não demorou para que ela tomasse tino dos eventos que a levaram até ali. Embora sua índole fosse honesta e mansa, seu espírito não foi imune à vaidade de tornar-se o centro das atenções, da admiração e da inveja de suas confreiras. E ainda, muito embora sua razão soubesse que o passar do tempo e a ausência de testemunhas lhe absolveriam de qualquer julgamento, não havia em seu coração sequer uma réstia de intenção em deixar faltar viço à posição que havia recém conquistado.
Cismar sobre maneiras de manter viva a chama da fé em “seu milagre”, desembotou as vistas de Maroca e remoçou seu pensamento, que há muito andava esquecido de si. Ofertar às pessoas mais motivos para rezar, comungar e contribuir com a obra divina, ponderava, eram motivos suficientemente nobres para cometer alguns pecadinhos mais, incapazes de fazer mal a alguém. E sua mente, que no passado já tinha sido tão vívida, logo lhe deu os meios a serem justificados pelos devidos fins.
O turno do almoço era o de menor movimento no arredor paroquial. Quando o Sol abrasivo repelia os “sem rumo” da praça. Quando Padre Onofre saía em sua ronda glutônica e a turma de beatas dava expediente nos próprios afazeres domésticos. Após servir o almoço de sua irmã, Rosinha, Maroca saía pé-ante-pé, protegida por um guarda sol florido, em direção à igrejinha. Praticamente livre de olhares curiosos.
Pelos próximos meses, a fiel rezadeira armou com sutileza a trama de sinais divinos que manteria viva a pulga das crenças miraculosas devidamente atrás das orelhas de cada irmão em Cristo. Não houve quem não ficasse admirado quando as velas do oratório, misteriosamente, exalaram um odor doce e cítrico que tomou conta de todo o templo. Quem poderia supor que a resina do breu branco havia sido incorporada na parafina de algumas das velas? Nossa Senhora da Purificação, decerto, ainda olhava com preferência e misericórdia para aquela comunidade.
A engenhosidade e habilidade manual de Maroca revelariam-se exitosas em dar fôlego ao milagre original. Quando menos se esperava, eis que uma mancha de cruz talhada em noda de caju surgia, sublime, na alvura do manustérgio do padre. Formigas e passarinhos passavam a disputar a água benta disposta em uma fonte de cerâmica no átrio da igreja, que da noite para o dia tornara-se adocicada como um néctar. A cada novo evento a maioria dos fiéis permitia-se a abstração das desconfianças diante da oportunidade ímpar de vivenciar tantas bênçãos. As outras carolas, recalcadas, por sua vez, não ousavam explicitar o ácido ceticismo que por dentro as corroíam.
Na sequência de cada cuidadoso aceno divino, Maroca retocava, a conta-gotas, o pranto milagroso da Santíssima Virgem, que gradualmente aumentava em tamanho e contraste, com seu tom carmim sobre a pele toda alva de gesso e de pureza. Foi justo durante esta delicada missão que, em um súpeto, a forjadora de milagres ouviu na penumbra da nave principal um barulho entre os longos bancos de madeira e pôde avistar no rastro de uma canela fina e dourada, sua inesperada companhia. Um moleque, que agora se esgueirava a quatro fileiras de onde ela se estarrecia, pálida, suspensa em uma banqueta de um palmo de altura.
“Menino! Diabo! Excomungado! Se eu te pegar eu vou te lascar de peia!”, vociferava a mulher enquanto tentava em vão perseguir o rapazinho no labirinto dos bancos. “Velha trambiqueira! Ihuuu! Toma vergonha, minha tia, enganando os outros!?”, zombava o menino enquanto varava com fluidez entre os assentos e escorregava o corpo esguio para fora do templo no curto espaço de uma janela basculante.
Daí em diante, dona Maroca, que jamais havia diferenciado tal moleque nas algazarras diárias que davam vida àquela praça, passou a encontrar o olhar agudo do menino com frequência, acompanhando-a nos caminhos que fazia. O rapazinho, que não devia ter nem oito anos de idade, fazia questão de ver e ser visto, sempre à distância. Ao passo que a mulher tentava disfarçar seu nervosismo e fingia ignorá-lo.
Tarde dessas, ao ver que o menino a observava com um sorriso de canto, trepado em uma galha florida de abricó de macaco, Maroca levantou o braço mostrando para o menino uma vasilha azul, dando a entender que aquilo era para ele. Não demorou para que o menino desse as caras na fresta da porta da igreja.
“Como é seu nome, menino?”, a mulher gritou, próxima ao presbitério. “Você não precisa ter medo de mim, não, viu? Nem eu de você”, continuou, com a voz comedida, diante do silêncio do jovem. “Eu preparei esses pés-de-moleque hoje, trouxe alguns para você. Pode apanhar, se quiser”, disse a velha apontando para a bancada de folhetos, próxima à entrada da igreja. A criança, prontamente, jogou o conteúdo da vasilha no bolsão formado pela curva de sua camisetinha e saiu. Um pacto silencioso estava formado.
O tempo que, outrora, era investido em renovar a fé e o apreço das pessoas por um falso milagre, rapidamente converteu-se em tentativas diárias de agradar o rapazinho que religiosamente vinha resgatar o tributo do seu silêncio. Bolo de aipim, mugunzá, paçoquinha, arroz doce, amendoim cozido. Todas estas iguarias que ela também costumava usar como argumento para que Juvêncio, seu menino Vencinho, se demorasse um pouco mais dentro de casa antes de inevitavelmente sumir por aí em disparada no horizonte da esquina em frente à casa. O brilho no olhar de Maroca permanecia intacto com a nova ocupação, mas, para os fiéis da Igreja da Purificação, talvez já não houvessem mais milagres por se revelar.
Não tardou para que Maroca descobrisse que o menino, de nome Vicente, era criado pela avó e vivia solto pelas redondezas, brincando e aprontando livremente como seu próprio filho costumava fazer na tenra idade. Apurou, à boca miúda, que a mãe do rapaz trabalhava o dia todo em um mercado na cidade vizinha e, do pai, ninguém sabia sequer dizer se ainda era vivo. Do Carmo só sabia que havia algo no atrevimento tímido do garoto e no seu olhar arguto – como o de Vencinho – que a intrigava e a motivava tanto quanto o sopro de ânimo que experimentou ao iniciar sua vida de falsária.
Cansada de manter-se inutilmente nas funções da igreja durante o turno mais quente do dia, agora que já não contava mais com o sigilo inviolável da sua trama de milagres, Maroca regressou para sua função primeira, de auxiliar nas missas da noite. Não sem antes informar Vicente que, se quisesse continuar ganhando seus quitutes, deveria ir buscá-los lá na casa dela, a poucas ruas dali.
Vicente assim fez, e passou a buscar todo dia um agrado que a mulher deixava pendurado no engradado da varanda, sob os olhos cúmplices de sua benfeitora que o observava, atenta, sentada em uma poltrona da sala.
Em uma das visitas, quando o inocente suborno já havia se tornado de fato uma parte agradável da rotina de ambos, Vicente tardou a chegar e, em vez de encontrar o olhar terno de Maroca o observando do sofá, foi surpreendido por uma senhorinha mais idosa, vestida em camisola, sentada em uma cadeira de balanço na varanda. Era Rosinha, que ao vê-lo subitamente inquietou-se e, em um sobressalto, começou a emitir murmúrios que logo se tornariam gritos exaltados, capazes de assustar o rapaz.
Maroca, que àquele ponto encontrava-se concentrada na cozinha, entre potes e jaboticabas, espantou-se quando os murmúrios de Rosinha subiram o tom, e correu esbaforida a socorrê-la.
Ao chegar na varanda, a forjadora de milagres ainda pôde ver o pacotinho que deixara para o menino, intacto e balançando, dependurado no engradado enquanto o vulto de Vicente sumia em disparada no mesmo horizonte, da mesma esquina, em que há muito se habituara a ver seu próprio filho sumir. Seus olhos, então, estacionaram nos de sua irmã que se projetava para frente e para trás nervosamente na cadeira. E, antes que pudesse se certificar que uma lágrima encarnada de fato rolava, vagarosa, na face da irmã, a própria Rosinha conseguiu romper o desgastado véu de seus murmúrios para pronunciar sílaba por sílaba a origem da inconfundível imagem capaz de transmutar seu desatino em vaticínio. “Vencinho! Vencinho! Vencinho!”.
Tácio Pimenta. Palmas, 2024.